As mulheres e a psicanálise

Vou pular a pergunta clássica da psicanálise levantada por Freud – O que quer a mulher? – e escrever sobre outro assunto que me interessou em meio à temática “Dia Internacional da Mulher”, que nesse começo de março fica em evidência.

Os figurões do início da psicanálise, ainda no seu período instituinte – até meados de 1920 –, são conhecidos (Ferenczi, Adler, Rank, Jung, …), mas quais foram as mulheres que participaram desse processo?

Encontrei duas referências muito boas que dão um bom caminho para que possamos responder essa pergunta. A primeira é um artigo de Renata Cromberg, que você pode ler na íntegra aqui. A segunda é o livro Em defesa da Psicanálise, que você pode ler o capítulo sobre esse tema também na íntegra aqui. Recomendo a leitura de ambos! Aqui vão alguns apontamentos…

A primeira mulher a ser membro da Sociedade Psicanalítica de Viena (WPV) foi Margarethe Hilferding, em 1910. Foram necessárias três reuniões até que a entrada de Hilferding fosse aceita, a primeira para votar a participação de mulheres da sociedade, a segunda para discussão se os votos seriam abertos ou anônimos e apenas na terceira os membros discutiram e votaram pela sua entrada, com 12 votos a favor, 2 contra e 1 abstenção.

Hilferding foi pioneira no estudo das bases do amor materno, mostrando, lá em 1911, que este não é inato, mas adquirido. Morreu em um campo de concentração nazista.

Ainda sobre as primeiras, foi Hermine von Hug-Hellmuth a pioneira a se dedicar à psicanálise com crianças, filiou-se à WPV em 1913. Possui uma história digna de um especial no E!:

Pesquisadora cuja obra prima é uma farsa, morre assassinada pelas mãos do sobrinho ilegítimo que era usado na infância como cobaia para suas interpretações selvagens.

Hermine empenhou-se no desenvolvimento de atividades jogos e desenhos, publicando artigos em sua coluna sobre crianças na Imago, periódico fundado por Freud. No entanto, muitas das suas análises sobre crianças deram-se a partir da observação de seu sobrinho Rolf (filho de uma irmã legítima, fato que a família Hug-Hellmuth mantinha em segredo).

Foi em 1919 que publicou sua obra mais importante na época, Diário de uma adolescente de onze a catorze anos, que se mostraria uma farsa em 1923, após denúncias. Como se a as coisas não pudessem ficar mais estranhas, o sobrinho alvo das interpretações, Rolf, a matou estrangulada em 1924 e quando saiu da prisão em 1930 pediu indenização para psicanalistas vienenses, mas recusou a oferta de análise que lhe foi feita.

Por conta de tudo isso, foi deixada de lado da historiografia psicanalítica, sendo preciso que historiadores contemporâneos tomassem o caso para estudo, a fim de que emergisse como fato histórico e deixasse o fundo de boato de lado.

Ainda, houve Tatiana Rosenthal, russa, engajada na psicanálise, no marxismo e no feminismo. Participou de lutas em favor do movimento operário, implantou a psicanálise na Rússia, ao mesmo tempo em que participava das reuniões da WPV. Estudou a obra de Dostoievski sobre o viés psicanalítico sete anos antes de Freud, que a omitiu de seu trabalho. Suicidou-se aos 36 anos.

Não posso deixar de lado Sabina Spielrein, a segunda mulher aceita na WPV em 1911, cuja vida foi mais estudada do que todas citadas anteriormente. Escreve Roudinesco:

“[…] testemunha privilegiada da ruptura entre dois homens (Jung e Freud, dos quais um foi seu amante e seu analista e o outro seu mestre).”

Essa história já virou filme. Dirigido por David Cronenberg, Um Método Perigoso trata justamente desse período, com os embates entre Freud e Jung e a relação de ambos com Sabina.

No entanto, como afirma Cromberg, a ênfase que até hoje foi dada a esse acontecimento na vida de Sabina não reflete sua notoriedade no meio psicanalítico:

“Uma mulher que […] frequentou a Universidade de Medicina, defendeu uma tese pioneira, interpretou de maneira inédita os fenômenos de amor, destruição e sublimação e origem da linguagem de forma a influenciar o pensamento teórico de Freud, Jung, Luria, Vygotsky e Piaget, homens com quem conviveu, foi pioneira em análise de crianças, foi pioneira em unir a psicanálise à linguística, escreveu cerca de 30 artigos, casou, teve duas filhas, foi psicanalista, conferencista, cirurgiã, médica e, além de tudo, compositora e música, não pode ser considerada nem louca e nem masoquista.”

Morreu assassinada pelos nazistas, na Rússia, em 1942.

Outras poderiam entrar nessa lista: Emma Eckstein, Vera Schmidt, Eugénie Sokolnicka, Sophie Morgenstern.

Nenhuma dessas mulheres morreu de morte natural, todas tiveram fins trágicos. Tiveram suas histórias e obras no meio psicanalítico contestadas ou esquecidas, seja totalmente ou parcialmente. Cada uma delas era marcada não só por ser mulher, mas também por ser judia, russa, vienense, com ideais políticos de esquerda…

Vale lembrar que todas elas compartilharam do final do século XIX e começo do século XX, nos quais a mulher ainda não tinha direito ao voto e só podia frequentar alguns poucos cursos universitários.

Ou seja, um período que era instituinte para a prática psicanalítica, para práticas políticas, para práticas culturais, enfim, para diferentes campos.

Elas foram esquecidas na época e aos poucos suas histórias foram sendo trazidas à tona.

Atualmente, apesar das práticas instituintes estarem cada vez mais incipientes, cabe para nós a reflexão de como não permitir que nos dias de hoje as mulheres continuem sendo suprimidas, esquecidas e tendo suas histórias denegadas, repetindo no início do século XXI, os erros do início do século XX.

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