Assisti ao filme “Minhas tardes com Margueritte (La Tête em Friche)”, de Jean Becker, estrelado por Gérard Depardieu, para me preparar para sua exibição no ciclo Conversando sobre cinema na Zona Norte de São Paulo, e tudo que me vinha à mente era: como fantasiar é importante na nossa vida! Ou seja, como é importante para o sujeito criar cenas, ficções, e narrá-las a si mesmo, um sonhar acordado.
E entre tantos pontos que poderia escolher do filme, é esse que vejo como o fio condutor de toda a história: uma narrativa da construção do fantasiar em uma pessoa, no caso o personagem interpretado por Depardieu, Germain Chazes.
Germain mora em uma pequena cidade na França, tem cerca de cinqüenta anos de idade, cuida de uma pequena horta e é responsável pelo abastecimento de um restaurante, local que visita com freqüência e onde encontra com amigos no tempo livre. Um dia, Germain conhece Margueritte, uma senhora de idade já avançada, no banco de uma praça da sua cidade, ela carregava consigo livros e seria responsável pela principal mudança em Germain – o desenvolvimento da capacidade de fantasiar.
Freud em Escritos criativos de devaneio (em uma tradução mais recente, O escritor e a fantasia) que uma atividade muito importante para a criança é o brincar, e que a antítese do brincar não é o que é sério, mas sim o que é real. Logo, o sentido daquela frase que tanto repetimos quando adultos: “Isso aqui é sério! Ou tá achando que é brincadeira?” vai por água abaixo.
Ou seja, para a criança o brincar é sério, mas não é real. E quando crescemos, ao pararmos de brincar, precisamos substituir todo o prazer que tínhamos com as brincadeiras. É aí que entra no adulto a importância do fantasiar, do devaneio, que entra justamente no lugar do brincar infantil.
Germain foi uma criança que teve suas brincadeiras reprimidas, chamada de burra pelo professor, com uma infância tão marcada pelas proibições que chega inclusive a escrever, agora adulto, seu nome no monumento às crianças mortas durante a guerra.
Se seguirmos a lógica Freudiana, logo percebemos que uma das conseqüências para a vida psíquica de Germain é a dificuldade em fantasiar. Não impediu que ele fosse um homem afetivo, corajoso, hábil, entre outras coisas. Mas a capacidade de criar e desfrutar de estórias ficou meio emperrada, sem sentido na sua vida.
É isso que vai mudando a cada conversa com Margueritte, a cada trecho de livro que eles lêem juntos, ele deseja cada vez mais entrar nesse mundo da fantasia. Aquele homem que antes era visto pelos amigos como meio burro, brucutu e sem jeito com as palavras, arrisca-se a usá-las de outras maneiras. Freud, no mesmo texto citado, nos adianta que isso causa repulsa e desconforto, no filme não poderia ser diferente.
Germain é escrachado pelos amigos e oculta de sua companheira todo esse mundo novo que está encarando, agora adulto, de por vergonha. Freud escreve: “Devem estar lembrados de que o indivíduo que devaneia oculta cuidadosamente suas fantasias dos demais, porque sente ter razões para se envergonhar das mesmas.” No entanto, o vínculo que Germain estabelecera com Margueritte sustentou que ele continuasse não só compartilhando com ela pequenos sonhos enquanto acordado, como também buscasse para si novas possibilidades.
Um filme que caminha na linha entre o fantasiar e a concretude da vida, mostrando a importância de não abdicar de um dos lados dessa linha, mas sim de saber transitar entre eles.