A primeira vez de Eva van End e a experiência psicanalítica

O cinema e a psicanálise são áreas que exercem um grande fascínio em mim e apesar de ambas terem surgido no mesmo período, final do século XIX , Freud nunca se debruçou sobre essa arte.

No entanto, tomo aqui as palavras de Tania Rivera, para aproximar as duas áreas: “O cinema tem, sem dúvida, como uma de suas vocações, a reflexão sobre si mesmo, sobre a imagem, sobre o sujeito. Sobre a vida.”¹.

Assim, em meio aos filmes que vi na 37ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, escolhi um que me marcou para escrever: A Primeira Vez de Eva van End.

Uma família como muitas de classe média aqui no Brasil: mãe dona de casa, pai funcionário de uma grande empresa local, filho mais velho com um bom emprego e pronto para casar e sair de casa, filho do meio usuário de drogas e a caçula, Eva, insegura e quieta, uma outsider tanto na família, quanto na escola, com o desejo de perder a virgindade. E quando Eva inscreve a família para receber um estudante alemão de intercâmbio, a dinâmica familiar (aparentemente) tão bem estruturada, começa a falhar.

E sobre essa vinda de um estrangeiro, que modifica uma dinâmica, vou citar um trecho de Jacques Alain Miller:

“Dentre os seus alunos, Lacan escolheu seu único aluno egípcio para ir analisar os judeus de Estrasburgo. Há nisso, para mim, uma lição extraordinária, isto é, que imediatamente faz-se do analista um Outro, e não há nenhum entendimento de comunidade possível de saída. […] Foi uma maneira de pôr em questão todas as suspeitas implícitas do sujeito.”.²

Foi preciso que um estrangeiro viesse para instaurar a crise naquela família aparentemente funcional, foi preciso alguém de fora, que não compartilhava de um entendimento comum, para jogar areia nessas engrenagens tão bem azeitadas de funcionamento.

Minha hipótese continua no sentido de que Veit, o alemão estrangeiro (não só ao lugar de origem, mas ao funcionamento familiar), representava de maneira estereotípica, tudo aquilo que a família aparentava ser para os outros: a perfeição.

Veit era atlético, loiro, olhos claros – o típico ‘boa pinta’. Acordava mais cedo que toda a família, preparava cuidadosamente o café da manhã para a mãe da família, que segundo ele não tinha tempo para si, sempre cordial, sorridente e compreensivo. Além de amigo das garotas populares da escola, era próximo de Eva, a outsider do pedaço. Ajudava financeiramente uma família africana, organizado com suas roupas, seu horários e compromissos. Enfim, tudo aquilo que um garoto do Ensino Médio nunca é.

Uma perfeição, em Veit e na família, que não passa de um clichê da classe média, propaganda de margarina, e sobre isso Zourabichvili escreve que “chega um momento em que não mais percebemos o real senão como já visto, […] somos invadidos pelos clichês, como por simples possibilidades. O mundo perdeu toda realidade.”³

Um estrangeiro que dispara uma mudança na dinâmica familiar, tendo como potência justamente escancarar o clichê no qual a família van End se colava. Com isso, os esquemas prontos (de família, de sujeito, enfim, de vida) já não sustentam mais nossa existência, mas acabam por tornam a nossa vida estranha a nós mesmos.

Ao se deparar com o espelho da própria existência, materializado em Veit, ocorre o desvelamento do disfuncional, antes um tesouro tão bem guardado dessa família, coloca seus membros em contato com o esvaziamento de sentido em suas vidas, gerando várias situações que demonstram o desbussolamento que se instaurou naquela casa.

A mãe procura saída em formas alternativas de meditação, o pai entra em contato com um garoto africano via internet e fica enviando-lhe as economias familiares, o filho mais velho abandona o casamento e o emprego, recluso em uma cabana infantil.

Tentativas dessa família de reorganizar a falta de sentido e de apostar em uma vida singular.

Dois personagens que se destacam dessa metáfora familiar são, precisamente, o filho do meio, Manuel, e Eva.

Manuel é um rebelde, estava fora dessa estrutura, passava os dias vagando pela cidade, fumando maconha e paquerando as garotas de seu colégio, ignorava a presença do estrangeiro, e ficava indiferente ao que acontecia na família ao seu redor, único filho que era chamado por um nome que começava com M e não com E, talvez essa fosse sua marca desde criança: aquele que já começou fora da lógica. Mas nem isso o eximia de angústia.

Eva, que dá título ao filme, é a personagem mais singular, que no decorrer do filme não se coloca como perfeita, mas como alguém que possui qualidades, mas que aceita seus defeitos, aceita suas dificuldades, e tenta lidar com elas com recursos que uma garota no começo da adolescência usaria.

Entretanto, o mais importante, é que ela investe no seu desejo. Não importa que não seja perfeito, que machuque, que envolva perdas, que traga angústias e não a complete (afinal, quando nos sentiremos completos?).

Poderia ser um filme de Todd Solondz, mas na verdade é de Michiel Ten Horn.

Poderia ser a nossa vida, mas é o cinema refletindo sobre o que nós fazemos com ela.

Ao fim do filme, cada personagem tem um desfecho, não é um Happy  End, mas como o próprio Lacan escreve: “[…] grandes sucessos não implicam que se saiba onde se está indo.” ?

Um filme que resume uma experiência analítica, pois é isso que a psicanálise pode nos proporcionar: um investimento na singularidade do sujeito, mesmo que à deriva.

¹ – Tania Rivera. Cinema, Imagem e Psicanálise. Zahar, 2008.

² – Jacques Alain Miller. Seminário do Campo freudiano. FALO, nº 2, 1988.

³ – François Zourabichvili. Gilles Deleuze: uma vida filosófica. Editora 34, 2000.

? – Jacques Lacan. Escritos. Zahar, 1998.

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