Psicanalista | João Godoy

O ano em que meus pais saíram de férias

As conversas sobre cinema na zona norte geram reflexões, antes e depois da sessão ser exibida, esse texto é uma delas.

1970: o Brasil iria jogar pelo tricampeonato na Copa do Mundo e não tinha nem dois anos que o AI-5 havia sido promulgado. Em Belo Horizonte, os pais de Mauro, um garoto de doze anos, dizem a ele que vão sair de férias e precisam deixá-lo com seu avô em São Paulo.

Mauro, sozinho, bate na porta do apartamento de seu avô, mas não obtém resposta – logo descobre que ele havia falecido momentos antes.

Esse é o disparador do enredo de “O Ano Em Que Meus Pais Saíram De Férias”, um longa-metragem de 2006, de Cao Hamburger. Uma obra que pode ser observada por diferentes aspectos, mas escolho lançar um olhar a partir da psicanálise.

A primeira frase do filme é de Mauro, o garoto: “Meu pai disse que no futebol todo mundo pode falhar, menos o goleiro. Eles são jogadores diferentes. Porque passam a vida ali, sozinhos, esperando o pior”.

É como se Mauro, na sua primeira fala, já anunciasse a trajetória que fosse percorrer no filme. Uma trajetória iniciada, assim como o longa, a partir do discurso do pai. Sobre isso, Lacan escreve no Seminário 10:

“[…] na origem, o desejo, como desejo do pai, e a lei são uma e a mesma coisa. A relação da lei com o desejo é tão estreita que somente a função da lei traça o caminho do desejo. […] O mito do Édipo significa que o desejo do pai é o que cria a lei.”

O que vemos nesse filme é justamente a materialização dessa afirmação lacaniana. Explico.

O goleiro funciona como a representação da fala do pai: “No futebol todo mundo pode errar, menos o goleiro”. No entanto, quando Mauro vai para São Paulo, ele deixa o jogador mais significativo para ele no jogo de botão – o goleiro – em Belo Horizonte. Ou seja, Mauro erra e se distancia da lei do futebol que seu pai havia lhe dito, na qual o goleiro não pode errar.

É quase como se o filme mostrasse o percurso de Mauro de se encontrar, de identificar-se com uma marca que seu pai havia lhe deixado.

A partir de então, Mauro começa a elaborar a sua inesperada solidão – sem seus pais, nem seu avô – nas redes do bairro que passa a morar, o Bom Retiro. Para isso seu novo vizinho, o judeu Shlomo, funciona como uma figura central nessa nova vida de Mauro, pois além de servir como referência – o filme chega a compará-lo com a filha do Faraó que cuidou de Moisés –, ele também agencia os moradores da região para que o garoto se sinta acolhido.

No entanto, Mauro precisava encontrar uma solução singular para sua condição, e a saída – inconsciente – que encontrou para elaborar a ausência dos pais foi a de tornar-se goleiro, podendo assim desejar novamente, mesmo que sozinho, mesmo sabendo que assim não poderia errar.

O filme acaba com Mauro retornando às suas primeiras palavras no filme dizendo: “Meu pai diz que no futebol todo mundo pode falhar, menos o goleiro. Mas será que ele já imaginava que eu ia virar goleiro? Ou será que ele já sabia?” Na fantasia da criança está o desejo do outro, o pai, como fator fundante do seu próprio desejo.

Tratando de temas complexos de uma maneira extremamente sutil, é como se o diretor de “O ano em que meus pais saíram de férias”, ao invés de contar a história como ela foi, escancarando os fatos, usasse a própria ferramenta da história – o não saber, não falar, não explicitar – para despertar olhares em direção ao que aconteceu no país e em direção a nós mesmos, permitindo assim a construção de novas subjetividades nos espectadores, ou seja, novos modos de nos relacionarmos com a nossa história e nossas trajetórias pessoas.

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