O Lixo, ou Quando Updike encontra Veríssimo

Li esses dias um artigo que me lembrou algumas coisas, resolvi compartilhar aqui.

A história tem 2 personagens: Paul Moran, um vendedor de raspadinhas, aqueles sorvetes de gelo triturado, e John Updike, um dos mais importantes escritores norte americanos do século XX.

Resumidamente, Moran estava andando de bicicleta por Beverly, Massachussets, quando John Updike foi tirar o lixo de sua casa e colocar na rua. Moran, após refletir, deu uma volta no quarteirão e pegou parte do lixo de Updike. Esse processo se repetiu por inúmeras quartas-feiras ao longo dos anos, quando Moran retirava todo o lixo de Updike e guardava em seu carro para futura inspeção.

Moran encontrou de tudo: manuscritos, cartas pessoais, fotos, cartões postais, recibos, enfim… Tudo que nós, famosos ou não, descartamos um dia por não vermos mais utilidade em guardar. O lixo é público, mas o que Updike acharia de tudo isso caso ele ainda estivesse vivo?

Trago agora o que a psicanálise diz sobre o lixo, o descartado, o que nos é estranho e inútil. Freud, em 1918, escreve:

“[…] pode-se compreender por que o uso lingüístico estendeu das Heimliche [‘homely’ (‘doméstico, familiar’)] para o seu oposto, das Unheimliche [‘estranho’]; pois esse estranho não é nada novo ou alheio, porém algo que é familiar e há muito estabelecido na mente, e que somente se alienou desta através do processo da repressão.”

O lixo muitas vezes é só lixo, mas o lixo também pode ser aquilo que toca em traços da nossa vida mental que outrora foram esquecidos, reprimidos. A escolha então, passa a ser: melhor eu jogar isso fora porque não quero remexer nisso aqui.

O que jogamos fora afinal, não é tão estranho, inútil assim.

Impossível não se lembrar de uma crônica do Veríssimo, O Lixo, na qual dois vizinhos se encontram na área de serviço comum do prédio e relatam o que um vem encontrando no lixo do outro (restos de comida, fotos, cartas, lenços de papel) e as conclusões que tiram disso.

Quando jogamos algo fora, esperamos que não só aquilo desapareça, mas que também a memória que aquilo nos traz vá junto.

Talvez, o próprio Updike tenha respondido a pergunta que fiz quando escreveu em um de seus textos, no qual um senhor vai até um lixão com seus filhos jogar algumas coisas fora e sua filha encontra uma boneca no meio de tanto lixo e o senhor responde:

“Ame-a agora. Ame-a agora, mas não podemos levá-la para casa.”

E então? O que fazer com o lixo?

Uma saída pode ser juntar o Updike com o Veríssimo. Updike escreve sobre a importância do lixo continuar descartado – sem negar a importância daquele objeto, enquanto os vizinhos de Veríssimo, a partir do lixo, do descartado de cada um, marcaram um jantar.

Não podemos remoer na nossa vida todos os sentimentos que já passaram por nós e que nos deixaram marcas, mas devemos nos permitir elaborá-los e construir um novo sentido.

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